quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Sobre a caligrafia
Arnaldo Antunes
20/03/2002
Caligrafia.
Arte do desenho manual das letras e palavras.
Território híbrido entre os códigos verbal e visual.
— O que se vê contagia o que se lê.
Das inscrições rupestres pré-históricas às
vanguardas artísticas do século XX.
Sofisticadamente desenvolvida durante milênios
pelas tradições chinesa, japonesa, egípcia,
árabe.
Com lápis, pena, pincel, caneta, mouse ou raio
laser.
— O que se vê transforma o que se lê.
A caligrafia está para a escrita como a voz está para a fala.
A cor, o comprimento e espessura das linhas, a
curvatura, a disposição espacial, a velocidade, o
ângulo de inclinação dos traços da escrita
correspondem a timbre, ritmo, tom, cadência,
melodia do discurso falado.
Entonação gráfica.
Tais recursos constituem uma linguagem que
associa características construtivistas
(organização gráfica das palavras na página) a
uma intuição orgânica, orientada pelos impulsos
do corpo que a produz.
Assim como a voz apresenta a efetivação física
do discurso (o ar nos pulmões, a contração do abdómen,
a vibração das cordas vocais, os movimentos da língua),
a caligrafia também está
intimamente ligada ao corpo, pois carrega em si
os sinais de maior força ou delicadeza, rapidez
ou lentidão, brutalidade ou leveza do momento
de sua feitura.
A irregularidade do traço denuncia o tremor da mão.
O arco de abertura do braço fica
subentendido na curva da linha. O escorrido da
tinta e a forma de sua aborção pelo papel
indicam velocidade. A variação da espessura do
traço marca a pressão imprimida contra o papel.
As gotas de tinta assinalam a indecisão ou
precipitação do pincel no ar.
Rastos de gestos.
A própria existência de um saber como o da
grafologia, independentemente de sua
finalidade interpretativa sobre a personalidade
de quem escreve, aponta para a relevância
que podem ter os aspectos formais que, muitas
vezes inconscientemente, constituem a "letra"
de uma pessoa.
O atrito entre o o sentido convencional das
palavras (tal como estão no dicionário) e as
características expressivas da escritura manual
abre um campo de experimentação poética que
multiplica as camadas de significação.
Além disso, suas linhas, curvas, texturas, traços,
manchas e borrões, mesmo que ilegíveis, ou
apenas semi-decifráveis, podem produzir
sugestões de sentidos que ocorrem
independentemente do que se está escrevendo,
apenas pelo fato de utilizarem os sinais próprios
da escrita.
O A grávido de O.
Érres e ésses atacando Es.
A multiplicação de agás.
Rios de Us e emes e zês.
Esqueletos de signos fragmentados.
Dança de letras sobrepostas possibilitando
diferentes leituras.
Paisagens.
Horizontes ou abismos.

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